Falando escrito

VESTIDOS DE LUNETA

Eu não tenho muita noção do quanto as pessoas entendem o que eu falo, falando de todo jeito. Eu costumo ser assim, muito sempre.

Então eu viajei. Fui como muito sempre gostei de ir, pelo verão me libertando. Uma ação com beira e poço até a outra beira, o regresso, a pisada muito sempre um tanto aérea no chão da terra de casa. Essa beirada que marca o fim da jornada no mesmo tom de consciência que marcou o começo, o empezo (esse) muito mais curtido e apreciado na solitude esquecida de tudo, aguçando o eu no mundo com boca mais cheia pra cada momento, espumando com mais rosto e olho pra cada pedacinho de instante.

Então eu entrei. No ônibus, na estrada, no outro que desconheço, no outro lado da fronteira, no sul. Cheguei no Chuí, no último pedaço do que restava de meu, fora uma parte de mim, e saí (!) cheguei no Uruguay – eu que dizia viajem pra Argentina.

Em Punta Del Diablo conheci o céu mais semelhante. Me espatifei num céu que me rege muito mais profundamente que o céu que eu chamava de pátria. Porque eu vi o outro que eu sou também, e que me é assim tão desconhecidamente – pra mim, que nunca deixo de me ver primeiro, ante as coisas.

Mas quando ficava de noite o céu, o céu mesmo, tava cheio estrela! E tinha gente linda pra compartir la felicidad, nunca tão pouco medrosa, cada vez mais corajosa. Porque agora tem espuma de onda brilhando azul de lua (!) e bichinhos bonitos verdinhos que dão na água, que só mostram seu brilho quando a gente toca, e pode tocar, nudo en el mar, na noite de estrela escura porque inverteu, e agora tem sol, tudo pelo contrário. Botando patas en el que está arriba, pondo as mãos en el que está abajo.

Inti Dutto é franco-uruguayo de família italiana. Mama uruguaya e Papa francês. Tem 35 anos e fala espanhol com biquinho. O conheci em Valizas, seguindo a costa uruguaya alguns quilômetros depois de Punta Del Diablo, perto de Aguas Dulces, ainda no Departamento de Rocha. E não em qualquer lugar de Valizas: na casa onde estavam Fede, de Federico; Mariana, de Pablo; e Pablo, de Mariana – o casal que quiseram ser meus pais, mas nos firmamos como irmãos, eles mais maduros e protetores. Conheci esses três mais Inti, à mesa, como visita inesperada, com boa conversa, bueníssima comida, e vinho. Dalí Inti convidou a mim e a Magi, minha irresumível companheira, para quedarnos en su casa; e nesse campo de dois sóis – a casa de Fede e Karcas, a casa-tartaruga de Inti – vivi o jardim de muita delicadeza, de muito perfume da flor mais distinta do outro.

Eu e todos que vi chegar em Karcas conheceram a casa-tartaruga pela noite. É tudo escuro e você não sabe direito onde pisar, então Inti acende uma vela e prende o fogo para ferver a água do mate. Você se acomoda em um cantinho, em cima de uma espuma que é sofá, e fica lá em silêncio ou falando pouco, baixinho, pra não despertar alguém que você não sabe quem é. Lá fora o barulho do mar preenche o escuro e o vento que sopra o barulho balança a chama da vela.

Há um ano Inti construiu Karcas, sozinho. Com o que encontrava completava o pouco que comprou e ainda hoje quando acha uma sucata que o mar cuspiu não descansa sua cabeça de geminiano até decidir como utilizar o novo achado. Com caixas de vinho – que são como caixas de leite – tapou as frestas da parede. Um sobre teto de barraca fecha el plasma, sua janela com formato widescreen que tem vista pro mar e é a televisão da casa. Dois pedaços de rede de pesca estão presos abaixo de uma bancada e aparam as frutas e legumes no ar; alguns caixotes de madeira completam a dispensa. Os pratos são pratos ou potes de sorvete, e Inti quer cocos do Brasil para tenelos más listos. O teto é metade de madeira, metade de zinco; e a casa está suspensa, bem fincada na areia, sob fortes toras de pinheiro. Há alguns metros existe um poço de onde tiramos a água. Enfim, essa é Karcas na sua estruturada simplicidade; e sim, queridas mamães, nós não vamos morar lá.

Descrever Karcas é fundamental para fazer entender o que estou falando. Mas quando cheguei aqui nessa minha beira, Brasília, concluí com minhas apaixonadas companheiras que precisaremos de uma estrutura um pouco mais cômoda dadas as necessidades de comunicação e pesquisa, e principalmente, dado o FRIO – que dão de graça pra quem quiser e pra quem não quiser.

Então, aonde vão morar?!

Alugaremos uma casa em Valizas, de alvenaria, com algum tipo de calefação, e talvez, eletricidade – luz não esquenta (né?), e a geladeira não faz tanta falta. Além disso, uma casa com eletricidade terá um aluguel mais caro, veremos se a diferença é muito grande. Eu penso que não. Enfim, a questão está em aberto.

Mas e… como chama a casa desse moço… Karcas! E Karcas?

Utilizaremos Karcas como espaço de ensaio e imersão. Podendo incursar alguns dias em suas condições e desfrutar do seu deslocamento, tendo sempre a referência da outra casa valizera.

Deslocamento, porque tanto falam essa palavra?

Não sei. Não sei muito. Uma parte eu posso explicar, outra acho que é a idade… Não estamos fugindo. Não conservamos a ilusão de que devemos nos manter afastados da cidade, do meio urbano, da selva de pedra, da babilônia – chamemos por vários nomes. Somos artistas, precisamos de gente para mostrar o que criamos, gente para se ferir das feridas que vasculhamos, e para acalantar com as cantigas que quase respiramos. Mas pensamos e sentimos que agora é a hora de ouvir mais os sopros dessas cantigas e não ter pudor para abrir mais nossas feridas, ou quem sabe deixar escorrer o sangue de algum último estanque. Precisamos criar um novo tempo nesse outro espaço para onde estamos indo. E sabemos que somos capazes de fazê-lo. Confiamos na nossa curiosidade, na nossa inquietação, no nosso sonho, en nuestra gana.

A juventude sempre foi pauta da nossa investigação, e cada vez mais tenho consciência da responsabilidade de ser jovem no momento em que o planeta está girando. Quanto mais jovem latinoamericano, residente do maior potencial natural do mundo e, junto com nossos outros irmãos desse tal de terceiro mundo, filhos políticos da cultura da exploração. Nosso caráter já nasce com algo a provar. Nosso jogo de ação e reação começa no negativo. E que benção eles nos deram, como é bom estar no pólo menos óbvio, já tendendo mais facilmente ao aprendizado de não atribuir tanto juízo de valor às coisas.

Portanto, estamos seguros de não nos deixar vencer pelo mesmo argumento que muitos jovens caíram e caem quando com ar de sabedoria alguém nos fala da nossa ingenuidade e do nosso idealismo. Sabemos que somos ansiosos sim, porque crescemos na era da informação e do conhecimento, acumulando. Sabemos da nossa pretensão, já que sempre nos pediram para o ser, sempre de olho no futuro e cheios de aviso para que não percamos tempo, pois temos a obrigação de ser os melhores, para que o mercado não nos engula.

Sim, e o mercado está aí! Bufando no nosso cangote. A diferença é que escolhemos uma atividade em que podemos virar uma pulga, e quando menos esperar, quem estará sugando somos nós. Estamos investindo no nosso futuro, inclusive profissional. Porque estamos engajados no primeiro projeto do nosso grupo, do lugar de onde queremos tirar nosso pão e nosso deleite – já que temos esse privilégio.

Como redoma de tudo, queremos colo dessa mãe de todo mundo, nosso abrigo, pachamama, e sentir mais sua benção, lembrar dela todo dia não como o mero cenário das nossas confusões, mas como o que mais nos aproxima de um sentido, aprimorando a consciência da sensibilidade que deveria reger sempre nossa troca.

Isso é o deslocamento pra gente. Deixar, por um momento, o vício daqui e ganhar a liberdade de lá. Para voltar e ser livre em qualquer lugar, pois buscamos aprender a escolher dentro da gente. E também para viver no corpo tudo o que racionalizei até aqui. Eu, Túlio Stopado, quero voltar e conhecer mais o outro lado em que estive e ainda sinto o cheiro. E quero compartilhar isso com o meu grupo de teatro, já que um grupo só sabe uma coisa se suas partes aprendem juntas, como um grupo. É nesse lugar que vai nascer a expressão dessa vivência. E aí sim, com o nosso teatro, vamos poder mais do fazer entender o que falamos, faremos viver o que vivemos.

Muito bem, entendi. Que lindo. Mas o que exatamente vocês vão fazer lá?

Também não sei. Mas já imaginei. E tenho o propósito nosso. O propósito é, com todos esses estímulos e com o que já vínhamos investigando, gerar material artístico para compor a primeira peça do STOPÔ!TEATRO. Temos a consciência de alguns rumos a guinar, já que conhecemos algumas de nossas zonas de conforto. Por exemplo, calar um pouco nossas cabecinhas pensantes para que não sobreponham o pensar do nosso corpo, e transpor idéias para o corpo da cena.

Tudo o que já imaginei parte de uma mistura da nossa rotina doméstica com nosso estudo de linguagem e a stopotização que vai caber nessa linguagem. O peso e a medida, monossilabicamente: só lá. E como já estou no campo da imaginação, ou seja, já me igualo em condições de presença com minhas companheiras e companheiros, passo a imprensa para eles. Com vocês: Iuri Stopáira, Luisa Stopat, Mirella Stopanha; o nosso orientador, Stopalião Aurélio, e os nossos colaboradores.


4 Respostas to “Falando escrito”

  1. Ei meus amores. Quero muito participar deste deslocamento. saudades!

  2. Consegui entrar…agora vou sentar um pouco e ficar só olhando… daqui a pouco eu vou…

  3. Pronto. Esse texto era tudo o que eu precisava. Faz um tempo que queria mandar um i-mail perguntando por notícias desses meus lindos amigos, mas esse texto já me satisfez. Continuo com muitas saudades, mas muito feliz por vocês. Um bejo enorme.

  4. querido stopante estou acompanhando em terra pátria seu deslocamentos te amo

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