assim falava Alcibíades

•29 de abril de 2010 • Deixe um comentário

Depois que Sócrates assim falou, enquanto que uns se põem a louvá-lo, Aristófanes tenta dizer alguma coisa, que era a ele que aludira Sócrates, quando falava de um certo dito; e súbito a porta do pátio, percutida, produz um grande barulho, como de foliões, e ouve-se a voz de uma flautista. Agatão exclama:
“Servos! Não ireis ver? Se for algum conhecido, chamai-o; se não, dizei que não estamos bebendo, mas já repousamos”.
Não muito depois ouve-se a voz de Alcibíades no pátio, bastante embriagado, e a gritar alto, perguntando onde estava Agatão, pedindo que o levassem para junto de Agatão. Levam-no então até os convivas a flautista, que o tomou sobre si, e alguns outros acompanhantes, e ele se detém à porta, cingido de uma espécie de coroa tufada de hera e violetas, coberta a cabeça de fitas em profusão, e exclama: “Senhores! Salve! Um homem em completa embriaguez vós o recebereis como companheiro de bebida, ou devemos partir, tendo apenas coroado Agatão, pelo qual viemos? Pois eu, na verdade, continuou, ontem mesmo não fui capaz de vir; agora porém eis-me aqui, com estas fitas sobre a cabeça, a fim de passá-las da minha para a cabeça do mais sábio e do mais belo, se assim devo dizer. Porventura ireis zombar de mim, de minha embriaguez? Ora, eu, por mais que zombeis, bem sei portanto que estou dizendo a verdade.
Mas dizei-me daí mesmo: com o que disse, devo entrar ou não? Bebereis comigo ou não?
Todos então o aclamam e convidam a entrar e a recostar-se, e Agatão o chama. Vai ele conduzido pelos homens, e como ao mesmo tempo colhia as fitas para coroar, tendo-as diante dos olhos não viu Sócrates, e todavia senta-se ao pé de Agatão, entre este e Sócrates, que se afastara de modo a que ele se
acomodasse. Sentando-se ao lado de Agatão ele o abraça e o coroa.
Disse então Agatão: – Descalçai Alcibíades, servos, a fim de que seja o terceiro em nosso leito.
– Perfeitamente – tornou Alcibíades; – mas quem é este nosso terceiro companheiro de bebida? E enquanto se volta avista Sócrates, e mal o viu recua em sobressalto e exclama: Por Hércu1es! Isso aqui que e? Tu, ó Sócrates? Espreitando-me de novo aí te deitaste, de súbito aparecendo assim como era teu costume, onde eu menos esperava que haverias de estar? E agora, a que vieste? E ainda por que foi que aqui te recostaste? Pois não foi junto de Aristófanes, ou de qualquer outro que seja ou pretenda ser engraçado, mas junto do mais belo dos que estão aqui dentro que maquinaste te deitar.
E Sócrates: – Agatão, vê se me defendes! Que o amor deste homem se me tornou um não pequeno problema. Desde aquele tempo, com efeito, em que o amei, não mais me é permitido dirigir nem o olhar nem a palavra a nenhum belo jovem, serão este homem, enciumado e invejoso, faz coisas extraordinárias, insulta-me e mal retém suas mãos da violência. Vê então se também agora não vai ele fazer alguma coisa, e reconcilia-nos; ou se ele tentar a violência, defende-me, pois eu da sua fúria e da sua paixão amorosa muito me arreceio.
– Não! – disse Alcibíades – entre mim e ti não há reconciliação. Mas pelo que disseste depois eu te castigarei; agora porém, Agatão, exclamou ele, passa-me das tuas fitas, a fim de que eu cinja também esta aqui, a admirável cabeça deste homem, e não me censure ele de que a ti eu te coroei, mas a ele, que vence em argumentos todos os homens, não só ontem como tu, mas sempre, nem por isso eu o coroei. – E ao mesmo tempo ele toma das fitas, coroa Sócrates e recosta-se.
Depois que se recostou, disse ele: – Bem, senhores! Vós me pareceis em plena sobriedade. É o que não se deve permitir entre vós, mas beber; pois foi o que foi combinado entre nós. Como chefe então da bebedeira, até que tiverdes suficientemente bebido, eu me elejo a mim mesmo. Eia, Agatão, que a tragam logo, se houver aí alguma grande taça. Melhor ainda, não há nenhuma precisão: vamos, servo, traze-me aquele porta-gelo! exclamou ele, quando viu um com capacidade de mais de oito “cótilas”. Depois de enchê-lo, primeiro ele bebeu, depois mandou Sócrates entornar, ao mesmo tempo que dizia: – Para Sócrates, senhores, meu ardil não é nada: quanto se lhe mandar, tanto ele beberá, sem que por isso jamais se embriague.
(trecho de O Banquete de Platão)

Se eu falo ”b”, esse ”b” é uma bomba-alarma na luta da humanidade

•28 de abril de 2010 • 1 Comentário

A LUTA DO MILÊNIO
Boa tarde, senhoras e senhores começa aqui e agora com todos vocês presentes a luta do milênio!
Do canto direito para o centro, os atuais donos da casa. com vocês: a polícia, os políticos, a mídia de massa, megafuckinginternationalcorporations, advogados associados comp. limitada, sim, li-mi-ta-da.
Agora os desafiantes! de baixo e das margens: músicos, poetas, artistas de rua, a contra-cultura, os novissímos ecoguerrilheiros, as sociedades alternativas e/ou marginais.
A polícia prende tortura e assassina. E a engrenagem não para! mas para toda regra uma excessão, em toda linha de montagem o defeito de fabricação. E nós NÃO VAMOS PARAR DE GRITAR, enquanto há um grito mesmo que somente um não se derruba o movimento!! Então uma salva de berros pela libertção, um coletivo de urros contra a manipulação humana.
Não se deixe levar pela maré, história cada um faz a sua.seja contra corrupção e condicionamento. seja você mesmo sua própia cultura porra!……pode-se até mastigar mas não se engole qualquer merda que lhe é entrege. Globalização é o caralho, e assim caminha a humanidade…
nós não podemos cair, temos de provar que a pena ainda pode ser mais poderosa que a espada, que a cultura ainda pode salvar o mundo, nós não podemos cair.
Salve a liberdade de expressão!
Salve a contra cultura!
Um brinde, e boa luta a todos vocês.

Mabel Loomis

•27 de abril de 2010 • Deixe um comentário

“abril é o mês em que ela lê cartas alheias. ano após ano faz isso, deve ser a proximidade do inverno, com seus recalques, escuridão e peso incontornáveis. antes as achava, às cartas, perigosas, por que ficavam sendo pra sempre um segredo dela, algo do qual tinha se apropriado para sempre. agora não, a solidariedade a faz esquecer do que leu.
a quem se deve contar quando se tem esse hábito pouco nobre, de bisbilhotar a vida alheia? a ninguém, talvez. é como explicar um sonho seu a alguém diferente do analista que ouve seus resmungos toda segunda feira no meio da manhã.
sente um pouco de medo de destampar uma panela fervente. mas não, pensando bem, não é mais medo o que tem – isso é uma insignificância do temor;
é só um hábito,
tem tantos outros mais corrosivos, mais perversos consigo própria e os outros.
já maltrarara muito a si mesma quando respeitava os silêncios dos seus homens tirânicos, já sofreu por não ter tido a oportunidade de perdoar. agora aprendeu a deixar a ansiedade ficar a seu lado, morar consigo por uma tarde, não mais.
é capaz de sorrir por dentro da imensa semelhança entre as desgraças, as suas e as dos outros, todos aqueles que não conseguem se transformar em fazedores de arte, em criadores em estado puro – só estes sabem desconhecer as regras e saltar nos abismos- um depois do outro- da liberdade. não é assim conosco, as almas bem pequeninhas que imploram por iluminações profanas.”

Mabel Loomis – http://mabelloomis.blogspot.com/

post e foto de beldiniz

pôr do sol em nova lima - 24/04/2010

Ao menos a Dom Bosco.

•22 de abril de 2010 • Deixe um comentário

Cinqüenta anos brindados com
carecas safados, policiais montados, professores espancados, estudantes
enjaulados, votos comprados, panetones vencidos, políticos vendidos, jovens
oprimidos, direitos destruídos e deveres esquecidos.Diogos torturados,
Barcelares empregados, Arrudas liberados, Rorizes candidatos e Otavios
Iguatemis. Tudo muito animado por um belo casal ratos. Parabéns Brasília…
Muitas felicidades e muitos anos de vida.

Chama, chama… Ninguém atende.

•22 de abril de 2010 • 1 Comentário

As gotas de azeite não param de cair em minhas mãos… Sensação difícil de julgar essa. Não sei se estou errado ou não correto em manter-me alheio ao gotejo. É como se a idéia do espectador fosse sempre um plano “b” que falhou… E ele fica ali, pensando numa alternativa “c” enquanto o evento escorre, corre, goza ou morre diante de seu corpo inerte.

A pia, que está em segundo plano no quadro dos meus olhos, permanece limpa e cheira até bem. É feita de pedra boa e é ótima para cortar carnes e uns bifes de dedo de vez em quando…  É isso que acontece com os que gostam de assistir, quando se tem quase certeza de que o fato contemplado não pode quebrar paredes ele vai e lhe arranca um bife de carne dos grandes, daqueles que fazem falta, um bife lindo… Talvez o pedaço mais bonito do seu corpo. O vidro já passa da metade e o plano “c” continua mais virgem que o azeite, e o pior é que não diagnostico prazer na minha não atividade… Que merda.

Certa vez sentei minha bunda dolorida num gramado aberto e fiquei sentindo a grama molhada pinicar minha carne de leve… O incomodo inicial é inevitável. Aquelas malditas pequenas lâminas verdes te cortando a pele devagar, se camuflando numa cretina sensação de coceira, isso realmente é desleal. Mas como dizer não a pobre da graminha quando se tem uma enorme e bela buceta feita de nuvens e tons de azul até onde os seus olhos alcançam?

Podem me arranhar! Rasquem-me se de vosso gosto for! Que venham também as formigas e seus batalhões! Os cupins incansáveis e seus traseiros perfurantes! Nada irá me privar dessa enorme vagina azul.

Mas o que eu ganho com a porra desse azeite pingando em minha mão? Tarde demais. Talvez o plano “c” seja usar óleo na frigideira.

desemoldurado

•22 de abril de 2010 • Deixe um comentário

além do que se vê, sentimento

Depois da mudança a casa ficou calada, vazia.

O silêncio abafado nas paredes lembra ontem quando houve música.

Lembra os encontros, as conversas, o cheiro das comidas…

Lágrimas rítmicas pingam na pia da cozinha fria.

Mas nos quartos vazios com as janelas fechadas ainda há calor de vida.

Entra uma luz que clareia a marca dos móveis riscada no chão.

Na sala ficou esquecido um retrato velho emoldurado em madeira esculpida por alheios cupins.

Uma moldura frágil que se sustentava pela expectativa de ser outros retratos.

E no silêncio da mudança, um sopro de vento novo norte do novo tempo.

A casa merece um trato,

um novo retrato com uma nova moldura.

Ou talvez, sem moldura.

Pois um retrato sem moldura é abertura.

É janela pra alma puramente infinita, porta aberta pro caminho seguramente incerto.

Certo de constantes mudanças e inconstantes retratos.

Se a moldura é limite estreito, o enquadramento precisa ser grande angular.

E que tal uma moldura sem retrato?

Na moldura vazia há além do que se vê, sentimento.

Espaço cheio de vazio a se preencher, emoção.

Vazio cheio de desafios a se cumprir, responsabilidade.

Moldura solta é muito mais expressão.

É mais personagem do que personalidade.

É liberdade de possibilidades e oportunidades.

Desemoldurado o retrato é livremente experimental.

Pode-se sonhar ao avesso e viver do essencial.

Pode até ser paisagem…

Paisagem sem moldura é feito casa sem muro.

O mundo é o lar, o quintal vai da montanha ao mar.

A cama é de nuvem e a energia é solar.

A família é humanidademente unida.

De repente, na casa vazia habita-se esperança.

Nova paisagem e novo retrato, sem moldura

em tempo de mudança.

bd

aniversário

•21 de abril de 2010 • Deixe um comentário

Em Brasília 19 horas, 50 anos e nenhuma palavra.

que ouço.

com amor, parabéns de aquí do Uruguay.

!cumple años…

é um salão

•19 de abril de 2010 • Deixe um comentário

o ronco do mar que está afuera
esconde o tumbado de tudo que está adentro.

o estabelecimento tem portas e molduras de madeira, essas últimas para segurar o vidro que mostra a ressaca imaginada pelo mar, que já engoliu tudo. o que se vê é espuma manchando o que o sal e a água limpa, ou o que por vezes compõe com verde o ambiente: as algas estateladas no vidro, e o pescador pizzaiollo viking com desejo de que o vidro as absorva: ele e elas tentam, como gengiva invadindo fresta de dentição.

há sempre mesas e cadeiras vazias. que se acumulam nos cantos dependendo da maré.

amarrada à nuca da loja, as palafitas pisando n’água, uma corda suspende num meio de fundo de mar amarrada à âncora que prende tudo a uma pedra abraçada com o chão.

¿y qué tema toca ayá ahora?

Jaguadarte – Lewis Carrol

•19 de abril de 2010 • 2 Comentários

Jaguadarte

Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e reviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Fefel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassura!”

Ele arrancou sua espada vorpal
e foi atras do inimigo do Homundo.
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando atraves da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para tras, para diante!
Cabeca fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois entao tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.

Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

 – Tradução de Jabberwacky de Lewis Carroll por Augusto de Campos

Exilado

•17 de abril de 2010 • Deixe um comentário

No alto de minha  pequenez desejo aos estimados companheiros de trabalho uma empreitada sinuosa, cheia de tons e cheiros bons e ruins… Flores, montanhas, pele, lixo, pé, boca e cu.  Devo também lembrar que estarei sempre atento e presente, buscando da forma que me for apresentada ajudar os meus queridos.

De sangue quente, senhores! Não existe frio que justifique esfriar… É de sangue quente que nos amamos. Menos que isso é “cu limpo” e “cu limpo” não fede… E o que cheira bem gera conforto que não acarreta deslocamento.

Um beijo lindo em cada um de vocês.

Falando escrito

•11 de março de 2010 • 3 Comentários

       VESTIDOS DE LUNETA    

       Eu não tenho muita noção do quanto as pessoas entendem o que eu falo, falando de todo jeito. Eu costumo ser assim, muito sempre.

        Então eu viajei. Fui como muito sempre gostei de ir, pelo verão me libertando. Uma ação com beira e poço até a outra beira, o regresso, a pisada muito sempre um tanto aérea no chão da terra de casa. Essa beirada que marca o fim da jornada no mesmo tom de consciência que marcou o começo, o empezo (esse) muito mais curtido e apreciado na solitude esquecida de tudo, aguçando o eu no mundo com boca mais cheia pra cada momento, espumando com mais rosto e olho pra cada pedacinho de instante.

        Então eu entrei. No ônibus, na estrada, no outro que desconheço, no outro lado da fronteira, no sul. Cheguei no Chuí, no último pedaço do que restava de meu, fora uma parte de mim, e saí (!) cheguei no Uruguay – eu que dizia viajem pra Argentina.

        Em Punta Del Diablo conheci o céu mais semelhante. Me espatifei num céu que me rege muito mais profundamente que o céu que eu chamava de pátria. Porque eu vi o outro que eu sou também, e que me é assim tão desconhecidamente – pra mim, que nunca deixo de me ver primeiro, ante as coisas.

        Mas quando ficava de noite o céu, o céu mesmo, tava cheio estrela! E tinha gente linda pra compartir la felicidad, nunca tão pouco medrosa, cada vez mais corajosa. Porque agora tem espuma de onda brilhando azul de lua (!) e bichinhos bonitos verdinhos que dão na água, que só mostram seu brilho quando a gente toca, e pode tocar, nudo en el mar, na noite de estrela escura porque inverteu, e agora tem sol, tudo pelo contrário. Botando patas en el que está arriba, pondo as mãos en el que está abajo.

Inti

        Inti Dutto é franco-uruguayo de família italiana. Mama uruguaya e Papa francês. Tem 35 anos e fala espanhol com biquinho. O conheci em Valizas, seguindo a costa uruguaya alguns quilômetros depois de Punta Del Diablo, perto de Aguas Dulces, ainda no Departamento de Rocha. E não em qualquer lugar de Valizas: na casa onde estavam Fede, de Federico; Mariana, de Pablo; e Pablo, de Mariana – o casal que quiseram ser meus pais, mas nos firmamos como irmãos, eles mais maduros e protetores. Conheci esses três mais Inti, à mesa, como visita inesperada, com boa conversa, bueníssima comida, e vinho. Dalí Inti convidou a mim e a Magi, minha irresumível companheira, para quedarnos en su casa; e nesse campo de dois sóis – a casa de Fede e Karcas, a casa-tartaruga de Inti – vivi o jardim de muita delicadeza, de muito perfume da flor mais distinta do outro.

    Eu e todos que vi chegar em Karcas conheceram a casa-tartaruga pela noite. É tudo escuro e você não sabe direito onde pisar, então Inti acende uma vela e prende o fogo para ferver a água do mate. Você se acomoda em um cantinho, em cima de uma espuma que é sofá, e fica lá em silêncio ou falando pouco, baixinho, pra não despertar alguém que você não sabe quem é. Lá fora o barulho do mar preenche o escuro e o vento que sopra o barulho balança a chama da vela.
        Há um ano Inti construiu Karcas, sozinho. Com o que encontrava completava o pouco que comprou e ainda hoje quando acha uma sucata que o mar cuspiu não descansa sua cabeça de geminiano até decidir como utilizar o novo achado. Com caixas de vinho – que são como caixas de leite – tapou as frestas da parede. Um sobre teto de barraca fecha el plasma, sua janela com formato widescreen que tem vista pro mar e é a televisão da casa. Dois pedaços de rede de pesca estão presos abaixo de uma bancada e aparam as frutas e legumes no ar; alguns caixotes de madeira completam a dispensa. Os pratos são pratos ou potes de sorvete, e Inti quer cocos do Brasil para tenelos más listos. O teto é metade de madeira, metade de zinco; e a casa está suspensa, bem fincada na areia, sob fortes toras de pinheiro. Há alguns metros existe um poço de onde tiramos a água. Enfim, essa é Karcas na sua estruturada simplicidade; e sim, queridas mamães, nós não vamos morar lá.

        Descrever Karcas é fundamental para fazer entender o que estou falando. Mas quando cheguei aqui nessa minha beira, Brasília, concluí com minhas apaixonadas companheiras que precisaremos de uma estrutura um pouco mais cômoda dadas as necessidades de comunicação e pesquisa, e principalmente, dado o FRIO – que dão de graça pra quem quiser e pra quem não quiser.

Então, aonde vão morar?!

Alugaremos uma casa em Valizas, de alvenaria, com algum tipo de calefação, e talvez, eletricidade – luz não esquenta (né?), e a geladeira não faz tanta falta. Além disso, uma casa com eletricidade terá um aluguel mais caro, veremos se a diferença é muito grande. Eu penso que não. Enfim, a questão está em aberto.

Mas e… como chama a casa desse moço… Karcas! E Karcas?

        Utilizaremos Karcas como espaço de ensaio e imersão. Podendo incursar alguns dias em suas condições e desfrutar do seu deslocamento, tendo sempre a referência da outra casa valizera.

Deslocamento, porque tanto falam essa palavra?

        Não sei. Não sei muito. Uma parte eu posso explicar, outra acho que é a idade… Não estamos fugindo. Não conservamos a ilusão de que devemos nos manter afastados da cidade, do meio urbano, da selva de pedra, da babilônia – chamemos por vários nomes. Somos artistas, precisamos de gente para mostrar o que criamos, gente para se ferir das feridas que vasculhamos, e para acalantar com as cantigas que quase respiramos. Mas pensamos e sentimos que agora é a hora de ouvir mais os sopros dessas cantigas e não ter pudor para abrir mais nossas feridas, ou quem sabe deixar escorrer o sangue de algum último estanque. Precisamos criar um novo tempo nesse outro espaço para onde estamos indo. E sabemos que somos capazes de fazê-lo. Confiamos na nossa curiosidade, na nossa inquietação, no nosso sonho, en nuestra gana.

        A juventude sempre foi pauta da nossa investigação, e cada vez mais tenho consciência da responsabilidade de ser jovem no momento em que o planeta está girando. Quanto mais jovem latinoamericano, residente do maior potencial natural do mundo e, junto com nossos outros irmãos desse tal de terceiro mundo, filhos políticos da cultura da exploração. Nosso caráter já nasce com algo a provar. Nosso jogo de ação e reação começa no negativo. E que benção eles nos deram, como é bom estar no pólo menos óbvio, já tendendo mais facilmente ao aprendizado de não atribuir tanto juízo de valor às coisas.

Portanto, estamos seguros de não nos deixar vencer pelo mesmo argumento que muitos jovens caíram e caem quando com ar de sabedoria alguém nos fala da nossa ingenuidade e do nosso idealismo. Sabemos que somos ansiosos sim, porque crescemos na era da informação e do conhecimento, acumulando. Sabemos da nossa pretensão, já que sempre nos pediram para o ser, sempre de olho no futuro e cheios de aviso para que não percamos tempo, pois temos a obrigação de ser os melhores, para que o mercado não nos engula.

Sim, e o mercado está aí! Bufando no nosso cangote. A diferença é que escolhemos uma atividade em que podemos virar uma pulga, e quando menos esperar, quem estará sugando somos nós. Estamos investindo no nosso futuro, inclusive profissional. Porque estamos engajados no primeiro projeto do nosso grupo, do lugar de onde queremos tirar nosso pão e nosso deleite – já que temos esse privilégio.

Como redoma de tudo, queremos colo dessa mãe de todo mundo, nosso abrigo, pachamama, e sentir mais sua benção, lembrar dela todo dia não como o mero cenário das nossas confusões, mas como o que mais nos aproxima de um sentido, aprimorando a consciência da sensibilidade que deveria reger sempre nossa troca.

        Isso é o deslocamento pra gente. Deixar, por um momento, o vício daqui e ganhar a liberdade de lá. Para voltar e ser livre em qualquer lugar, pois buscamos aprender a escolher dentro da gente. E também para viver no corpo tudo o que racionalizei até aqui. Eu, Túlio Stopado, quero voltar e conhecer mais o outro lado em que estive e ainda sinto o cheiro. E quero compartilhar isso com o meu grupo de teatro, já que um grupo só sabe uma coisa se suas partes aprendem juntas, como um grupo. É nesse lugar que vai nascer a expressão dessa vivência. E aí sim, com o nosso teatro, vamos poder mais do fazer entender o que falamos, faremos viver o que vivemos.

Muito bem, entendi. Que lindo. Mas o que exatamente vocês vão fazer lá?

Também não sei. Mas já imaginei. E tenho o propósito nosso. O propósito é, com todos esses estímulos e com o que já vínhamos investigando, gerar material artístico para compor a primeira peça do STOPÔ!TEATRO. Temos a consciência de alguns rumos a guinar, já que conhecemos algumas de nossas zonas de conforto. Por exemplo, calar um pouco nossas cabecinhas pensantes para que não sobreponham o pensar do nosso corpo, e transpor idéias para o corpo da cena.

Tudo o que já imaginei parte de uma mistura da nossa rotina doméstica com nosso estudo de linguagem e a stopotização que vai caber nessa linguagem. O peso e a medida, monossilabicamente: só lá. E como já estou no campo da imaginação, ou seja, já me igualo em condições de presença com minhas companheiras e companheiros, passo a imprensa para eles. Com vocês: Iuri Stopáira, Luisa Stopat, Mirella Stopanha; o nosso orientador, Stopalião Aurélio, e os nossos colaboradores.